segunda-feira, 2 de maio de 2016

A defesa do indefensável

O circo de aberrações da esquerda brasileira atingiu novos patamares de baixeza moral, civilizacional e estética nos episódios que sucederam a votação do processo de impeachment de Dilma Rousseff. A violência dos discursos não seria novidade - antes da tentativa de derrubada do atual governo, na tramitação do processo no parlamento, a militância socialista já avisava que iria promover "guerra civil", "invasões" e ações de "exércitos" como o MST, caso o projeto de poder do Foro de São Paulo fosse ameaçado. Isso não é absolutamente nada, quando o falatório é comparado às obras escritas e "humanitárias" dos socialistas-modelo dos séculos anteriores. Karl Marx e Friedrich Engels pediram o genocídio do que chamavam de "lixo étnico" - os "povos reacionários", "resíduos" espalhados em todas as nações prontos para resistência contra o "paraíso dos trabalhadores" a ser impleantado pela elite revolucionária, o "proletariado", que nada mais é, para a esquerda, do que os próprios vozhdi do marxismo. Os gestos de barbárie troglodita do deputado Jean Wyllys e do ator de televisão (grande amigo de José Dirceu, por sinal) são a projeção linguística do que a esquerda é - o que o representante do PSOL fez, durante a votação, é apenas uma demonstração do tipo de abordagem que a esquerda aplica a toda a barreira que se oponha aos sonhos de poder do "partido da vanguarda". A conduta de um parlamentar não importa, desde que esteja submetida aos propósitos da liderança revolucionária. A linguagem, a civilização, o mínimo de postura que se espera - não de um político, mas de qualquer ser humano - não importam: o que importa é mostrar aos "reacionários" que o grupo representante do futuro perfeito não podem conhecer a frustração. Curvar-se à civilização é abrir mão do "poder soviético". Lenin não dialogava no bom idioma eslavo com seus adversários: "jogava todos pela janela", como dizia Stalin. Quando os trabalhadores de Penza e os marinheiros de Kronstadt se levantaram contra o bolchevismo, Lenin - e Trotski - passaram a classificá-los como "pequeno-burgueses", passaram a afirmar que os mesmos indivíduos que serviram nas tropas da revolução agora haviam se tornado inimigos de classe. Capitalistas e sabotadores haviam se infiltrado nas fileiras dos que foram os primeiros nas tropas vermelhas de outubro. Uma vez que o obstáculo seja erguido contra a "vanguarda dos operários e soldados", ele deve ser derrubado com violência exemplar. Lenin dizia: "se o inimigo resistir, ele deve ser exterminado". Foi o que o bolchevismo fez com os camponeses, os operários, a intelectualidade, os cossacos os nobres e até contra os bolcheviques que passaram a questionar a causa. Foi o que a esquerda fez com o bom-senso, a linguagem, a razão, a coragem, as artes, a civilização e tudo aquilo que a "vanguarda" entende como obstáculo à "sociedade vindoura". É por isso que o ator de quinta categoria, que nunca será reconhecido além das terras dominadas pela revolução cultural, jamais pedirá desculpas. É por isso que a esquerda jamais reconhecerá o que fez - e está fadada a repetir.

Jair Bolsonaro não provocou Jean Wyllys, e isso fica claro no registro em vídeo do episódio. O deputado socialista alegou, todavia, que havia sofrido "ofensas homofóbicas" por parte do conservador. As alegações são claramente uma mentira - a única coisa que Bolsonaro fez foi repetir a palavra de ordem "Tchau, querida!", lançada pelo próprio Luiz Inácio Lula da Silva, aliás. Não há ironia maior - todos sabem que o ex-presidente é um homofóbico e machista de grosseria suína, e provavelmente é o tipo de sujeito que efetivamente deve se permitir grosserias contra minorias ou contra os protegidos pelo "politicamente correto", quando está apenas na presença de amigos. É exatamente isso que ficou claro, após a divulgação das conversas pessoais de Lula. A sugestão do estupro coletivo contra uma de suas correligionárias dá testemunho de toda a grandeza moral da "vanguarda". Mas a razão, o bom-senso e o amor pelas minorias deve passar longe, se o conjunto dos valores irá oferecer problemas para o "socialismo petista", para a "revolução" que a delicada elite partidária brasileira gostaria de fazer. Nenhum dos grandes líderes socialistas tinha qualquer preocupação com a possibilidade de ofender povos inteiros, minorias, indivíduos ou acabar com qualquer resquício de conduta civilizada na conduta pública. Por que Lula, Jean Wyllys e José de Abreu deveriam cultivar hábitos diferentes? "Para fazer uma omelete, é preciso quebrar ovos", para refazer o mundo do teto aos alicerces, é necessário derrubar tudo o que está aí. Sem a demolição completa da normalidade humana, o "novo homem", o "super-homem", a "humanidade pura" jamais nascerá. Para um movimento que passou mais de cem anos em defesa incansável do genocídio, o que é a linguagem? Sem compreender que tudo, absolutamente tudo, é justificado pelo movimento revolucionário, é impossível entender o movimento esquerdista moderno. É disso que falam Eric Voegelin e Russell Kirk quando comentam a respeito da "impossibilidade de questionar": o "movimento" não pode admiitir dúvidas. Tudo se resume ao futuro, tudo se justifica em nome do futuro, tudo será feito em nome do futuro - todo o que já foi feito deve ser aceito como necessário ao que virá, e todos os erros serão repetidos porque, como o Século XX ensinou, a sociedade prometida nunca chegará. O sonho, todavia, termina com lágrimas, desilusão e alguns suicídios nas fileiras leninistas.

Imagem: https://goo.gl/n5fHsE
Quando José de Abreu se recusou a pedir desculpas por seu gesto, está apenas dando testemunho do que é toda a ideologia: não é possível pedir desculpas pela edificação do advento do socialismo. O futuro não pede desculpas, e, como o nome sugere, "a vaguarda do proletariado", "a vanguarda da humanidade" - que é o que a elite revolucionária gostaria de dizer, com franqueza - é o futuro encarnado. "A vanguarda" é o messias, "a vanguarda" é o que Münzer dizia de si mesmo, "o novo profeta Daniel". O movimento revolucionário se vê como o futuro, que não pede gentilmente para nascer: a revolução será sangrenta e impiedosa. O movimento possui um caráter notoriamente escatológico - imagina que é "o fim da História", a organização social que irá transcender a sociedade de classes ou de castas. O futuro não irá conhecer injustiças, e é em nome de perfeição que todas as imperfeições podem ser cometidas. Só as gerações vindouras podem julgar "a vanguarda", "a elite de revolucionários profissionais", então o que significa um pequeno gesto de imundície? Tudo é permitido aos porcos que colocam a si mesmos no papel de juízes de quais seres humanos merecem ou não a vida. Lenin reservou-se o direito de dizer quem eram "os parasitas", "os sanguessugas" e quais pessoas eram integrantes da "classe revolucionária" - para um "novo Daniel", até um integrante da nobreza como o fundador da KGB, Felix Dzerzhinski, pode ser feito "proletário". O que o ator quer dizer é: "eu posso". Quando toda a esquerda justifica a quanidade de atos criminosos cometidos nos últimos meses em nome da causa, o que quer dizer, de fato, é que "o movimento está autorizado a fazer tudo isso" - a promessa de um paredão de fuzilamento, por um líder do PCB, é um aviso: "podemos fazer isso também".

O "eu posso" do movimento revolucionário é talvez a mais importante marca do movimento gnóstico - é um sintoma claro do que atormenta os cérebros dos militantes socialistas. O "eu posso" é o eco das poesias de Karl Marx - é a revolta contra a existência. O socialista vê a si mesmo como um "injustiçado" por Deus, como Münzer fazia. "O que aí está é corrupto, vil - através da vilania eu irei purificar o campo. O sofrimento dos camponeses é consequência da sociedade dos ímpios - levarei sofrimento horrendo a cada um dos ímpios, e criarei um mundo de alegria". Os usurpadores do papel do Messias não cometem seus crimes por desejarem a felicidade universal: fazem tudo o que fazem porque, no fundo, acreditam que possuem o discernimento para criar um "mundo perfeito", um "novo homem" e uma sociedade de alegria e abundância infinitas. Cada um dos gestos da "vanguarda" é um testemunho de que os criminosos se imaginam como capazes de transcenderem a realidade e recriarem tudo o que há, "de cima", "de fora". O "partido de Lenin" é o entalhe da própria presunção demoníaca no mundo dos homens, é um tributo à estupidez de indivíduos incapazes que entendem a si mesmos como muito superiores às suas tristes vidas miseráveis. Em um ciclo vicioso infernal, cada erro se torna um acerto, porque, nas mentes pervertidas, é prova de dedicação ao "futuro perfeito" - quanto mais a escória se destrói, mais fica feliz em naufragar. O ódio gnóstico contra a existência justifica cada passo e crime, cada absurdo e cada violação - os cátaros odiavam a própria vida humana, "corrupção", "podridão", que deveria, em última análise, deixar de existir - séculos antes de Stalin, a tradição milenar já havia dito: "sem homem, sem problema". O bolchevismo odeia cada vida humana que se posiciona contra "o futuro" - os arquitetos da sociedade dos justos estão autorizados a toda inustiça - como Karl Marx, os "engenheiros" gritam blasfêmias contra a Realidade, e sentem-se moentados na razão ao fazê-lo, porque "sabe como edificar uma melhor". A corrupção mais baixa, mais mesquinha e mais maligna nunca conheceu tamanha multiplicidade de disfarces - aliás, elaborados com esforço de um exército de comparsas no crime.

Para alguém envolvido até o pescoço no movimento revolucionário (ou contaminado severamente pela deficiência mental do gnosticismo) é praticamente impossível confessar culpa. O disfarce "com os mais belos e humanitários fins" da perversão é o mais confortável dos leitos. É a muleta perfeita para os maus, os fracos de espírito, os mesquinhos, os covardes, os que já possuem a alma imundo a tal ponto em que se torna quase irrecuperável. Para os psicopatas, que constituem a maior parte dos luminares "do movimento" e "entre os companheiros de viagem", é um desafio ainda maior. A ausência de imaginação moral jamais permitirá ao criminoso ver a si mesmo - tal como o vampiro, o revolucionário não pode ver seu próprio reflexo, e, se o visse, é provável que teria o destino de um Dorian Gray. A queda do revolucionário é confessar quem é - ele é proibido de pronunciar seu próprio nome. Se o fizer, sua mentira, que abraça como falsa personalidade, morre inevitavelmente. Ver quem é, entender quem é, será ter ódio contra sua própria alma. O revolucionário não pode fazê-lo, ou por uma doença mental, como descrito por Łobaczewski, ou por medo da confessar sua condição de pequenez. O revolucionário não quer apenas refazer a Realidade: ele a odeia, e tem medo dela. Por acreditar que já está condenado, Münzer deseja, acima de tudo, o poder sobre o tribunal - condenando a todos, ele pensa que talvez tenha alguma chance de se salvar. 

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